sábado, 24 de maio de 2008

Mudanças no horizonte: os planos do Ipea para o Brasil

Para Márcio Pochmann, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o Brasil está diante de uma oportunidade inédita para atingir outro patamar de desenvolvimento. Caso saiba aproveitá-la, diz em entrevista à Carta Maior, o país pode melhorar de forma substancial a vida de sua população, assim como a inserção brasileira no cenário mundial.
Antonio Biondi – Especial para a Carta Maior
BRASÍLIA – O Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) foi incumbido pelo presidente da República de elaborar um plano de desenvolvimento de médio prazo para o Brasil. O prazo dado pelo presidente Lula a Márcio Pochmann, presidente do Ipea, é no sentido de que o projeto seja apresentado até 2010. Mas, desde já, Pochmann, em conjunto com o ministro extraordinário de Assuntos Estratégicos, Mangabeira Unger, trabalha na proposta. E faz questão de explicitar alguns dos elementos que devem nortear o plano em questão. Nesta entrevista exclusiva, concedida à Carta Maior em seu gabinete em Brasília, Pochmann apresenta as premissas que embasam sua visão de futuro para o Brasil.
Entre os temas abordados pelo presidente do Ipea, estão a necessidade de o país melhorar a qualidade de suas exportações, a importância de uma política industrial que leve à produção de itens mais elaborados no país, e, o imperativo de o Brasil trabalhar com ainda mais afinco na diminuição da pobreza e das desigualdades, bem como na geração de postos de trabalho mais qualificados.
A entrevista vem em boa hora: nesta semana, a Petrobrás se consolida como uma das maiores empresas do mundo em valor de mercado (a 5a no mapa global), e a 3a maior das Américas, deixando para trás gigantes como a Microsoft. E, nos quatro primeiros meses de 2008, a geração de empregos com carteira assinada no Brasil chegou a 846 mil novas vagas. Mais um recorde, que confirma a expectativa de 1,8 milhão de empregos formais gerados em 2008.
Carta MaiorProfessor, tanto a direita quanto a esquerda do governo fazem uma crítica de que há migalhas para o social e muito para o capital. Outros setores afirmam que, diante da desigualdade secular que marca nosso país, o que se está mudando durante o governo Lula é na verdade muito pouco. Como você analisa essas questões?
Pochmann – Estamos na quinta década em que a participação dos salários na renda do país vem caindo. Nós temos um problema estrutural da desigualdade. O que se verificou no governo Lula foi que, de certa maneira, os de baixo, os mais pobres, tiveram espaço na agenda das políticas públicas. De certa maneira, essas pessoas têm sido beneficiadas, mas o que se percebe, por outro lado, é que praticamente todo mundo ganha no governo Lula. Os ricos também têm sido muito bem beneficiados, os faturamentos das empresas, os ganhos dos bancos, os ganhos das empresas estrangeiras, etc, não têm sido pequenos! Exatamente porque com o crescimento é possível que todos ganhem. Juntando esses aspectos, vejo com muito interesse as reformas que o Brasil deve fazer. Por exemplo, para que, na tributação, os impostos onerem de fato os mais ricos, e não os mais pobres – como acontece hoje. Nós temos hoje um espaço de construção de políticas públicas de um novo tipo, voltadas a corrigir as desigualdades geradas justamente durante o período do crescimento econômico [verificado durante a ditadura militar de 1964-1985]. Como nós estivemos submetidos durante mais de duas décadas a uma expansão da renda a um nível muito baixo, os maiores perdedores foram os pobres, os trabalhadores. Nos dias de hoje, é difícil encontrar alguém que tenha perdido: praticamente todos ganharam. Só que os ganhos não ocorrem na mesma velocidade. E a melhor maneira para reduzir a discrepância nas velocidades da expansão da riqueza, na absorção da riqueza, a meu modo de ver vem acompanhado de reformas, entre elas a reforma tributária, a reforma agrária e outras reformas sociais.
Carta MaiorE como você avalia a necessidade do Brasil de obter superávits comerciais, buscando ampliar suas exportações e enfatizaando aquela mais primárias?
Pochmann – Nosso risco, na medida em que fortalecemos as exportações sustentadas em bens primários, é de nos especializarmos em produzir bens de baixo valor agregado, pouco conteúdo tecnológico e que terminam associados a empregos de baixa qualidade, a empregos de reduzida remuneração. Isso praticamente inviabiliza a existência de uma classe média. Atualmente, quando se fala de uma nova classe média, estamos falando da emergência de uma classe média com rendimento de três salários mínimos, por exemplo. Não é uma classe média com renda de dez salários mínimos, vinte salários mínimos. É uma classe média baixa neste sentido. Isso se relaciona com a trajetória do país nos anos 80 para cá, e diz respeito a um certo enxugamento da classe média assalariada, e uma expansão da classe média proprietária, da classe média vinculada a pequenos negócios. Então, podemos dizer que a atual emergência da classe média diz respeito a empregos que não são tão precários – são empregos formais muitas vezes, ou vinculados aos pequenos negócios –, que têm uma indicação clara de transformação social do país. Mas a sua sustentabilidade pressupõem a continuidade do dinamismo da economia. Se houver uma desaceleração, possivelmente este segmento será fortemente atingido.
Carta MaiorPodemos afirmar que é necessário melhorar a pauta de exportações, e, ao mesmo tempo, apostar de forma mais firme ainda no mercado interno?
Pochmann – Eu diria que sim. Nós precisamos de uma política industrial, voltada a enriquecer as cadeias produtivas [a nova política industrial do governo Lula foi apresentada na segunda-feira passada (12), sob o nome de Plano de Desenvolvimento Produtivo – PNP]. O Brasil não pode produzir, exportar bens primários apenas. O Brasil precisa exportar bens que passam por processos de beneficiamento, o que permite maior produtividade, que por sua vez permite pagar salários maiores, e que gera, por conseqüência, maior renda.
Carta Maior Em sua análise, professor, para que direção o país caminha hoje?
E como o Ipea e o governo devem trabalhar essas tendências, a fim de potencializá-las?
Pochmann – O Brasil está carente de uma visão de longo prazo, uma visão que unifique o governo e a sociedade. Este é o papel que o presidente Lula incumbiu ao ministro Mangabeira Unger e ao Ipea: produzir uma visão de longo prazo, uma orientação que possa dar convergência econômica e política ao país, que o coloque daqui a alguns anos em um patamar muito superior nestes aspectos ao verificado atualmente. Assim, estamos construindo um plano que deve ser participativo, que tenha as diferentes visões da sociedade. Se mantivermos um ritmo de crescimento de 5% ao ano – e talvez esssa seja a principal diferença do 2° governo Lula para o 1°, pois neste governo há o compromisso com o crescimento de 5% – em 2008, 2009 e 2010, nós teremos em três anos a geração de 7,5 milhões de empregos. Isso certamente será muito importante não apenas para absorver aqueles que estão chegando ao mercado de trabalho, mas também reduzir aqueles que estão desempregados há mais tempo. Neste cenário, chegaríamos ao ano de 2011 com uma taxa de desemprego equivalente a praticamente a metade da que temos hoje. Em termos históricos, em relação ao desemprego e remuneração dos trabalhadores, voltaríamos a uma situação econômica e social próxima àquela vivida nos anos 70 e início dos anos 80. Tais perspectivas nos apresentam uma oportunidade praticamente inédita para que as desigualdades sociais e a pobreza, assim como as discrepâncias que existem em termos de competição e de produtividade do Brasil em relação ao mundo, sejam muito menores do que as atualmente verificadas.
Carta MaiorResumidamente, podemos portanto apontar algumas questões centrais neste projeto de longo prazo...
Pochmann – Reforma tributária e outras reformas sociais, melhoria na pauta de exportações, fortalecimento do mercado interno, ampliação do acesso ao crédito... E a bancarização da população, sobretudo dos micro e pequeno empreendimentos, que não têm acesso na quantidade necessária ao crédito e à assistência tecnológica.

“similitudes”

BRASÍLIA – Na terceira e última parte de sua entrevista à Carta Maior, o presidente do Ipea, Márcio Pochmann, analisa algumas políticas econômicas e sociais do governo Lula em comparação às de seu antecessor, Fernando Henrique Cardoso. Pochmann vê “similitudes” entre as duas gestões, mas rebate com facilidade as críticas que classificam o atual governo como “mais do mesmo” em termos de objetivos e ênfase nas transformações buscadas para o Brasil.

Pochmann fecha a entrevista com uma análise sobre a situação dos EUA, que, no seu entender, viveria hoje um ponto de inflexão em sua hegemonia mundial.

Carta MaiorMuitas, vezes, há críticos que dizem que as tendências da diminuição da pobreza e da desigualdade verificadas no governo Lula já vinham se estabelecendo desde o governo Fernando Henrique e que, portanto, o governo Lula seria somente mais do mesmo. Você concorda com essas avaliações, ou há diferenças marcantes entre as duas adminsitrações nestes pontos?

Pochmann – Nós tivemos experimentos diferenciados, como por exemplo a aposta no crédito, que tem sido um elemento importante na ampliação do consumo dos segmentos de menor renda, dos assalariados, dos aposentados. Isso certamente foi uma novidade. Como também foi a unificação dos programas de transferência de renda. O governo anterior, embora não tivesse o Bolsa Família, possuía um conjunto mais fragmentado de políticas, de forma que, sob o governo Lula, houve a unificação – e não apenas uma unificação que deu racionalidade e maior foco neste tipo de política, como também houve a ampliação do número de beneficiados e elevação da remuneração, de elevação do valor pago.

Então, mais do mesmo, significaria a continuidade da fragmentação daquelas políticas, e mais do mesmo significaria inclusive uma parcela relativamente pequena. Nós saímos de 3 milhões de famílias atendidas para 11 milhões de famílias atendidas. Quer dizer, os programas de transferência de renda ganharam uma dimensão que não estava estabelecida pelo governo Fernando Henrique Cardoso.

Em segundo lugar, é bem verdade que o salário mínimo começou a se recuperar de forma mais recente a partir da estabilidade monetária. Agora, os ganhos em termos reais mais significativos foram garantidos no governo Lula, bem como o estabelecimento de uma política para o futuro. Hoje, contamos com uma política de médio prazo para o salário mínimo que não existia anteriormente.

Tivemos, ainda, a correção da tabela do Imposto de Renda, que foi uma medida importante para os níves intermediários de remuneração do país.
Então, ao meu modo de ver, é possível identificar determinadas similitudes entre os dois governos, mas as ênfases são diferentes com relação ao governo Lula.

Carta MaiorE quanto às análises que apontam para a existência de uma bolha do crédito nos EUA, para além e anterior à bolha no mercado imobiliário, que agora começaria a se dissolver?

Pochmann – No que diz respeito à situação da economia norte-americana, é importante dizermos que praticamente desde a crise de 1973, que abortou o sistema financeiro internacional, em que o dólar tinha a conversibilidade ao ouro e era uma moeda praticamente estável, e que os juros eram flutuantes no mundo, este período que vigorou durante o pós-guerra, foi um período de relativamente estabilidade mundial e que apresentou o crescimento de quase todos os países.

O esgotamento do sistema financeiro mundial, o fracasso das agências multilaterais de Bretton Woods, entre elas o Banco Mundial, o FMI entre outras, fez com que a forma de organização do sistema financeiro internacional e dos bancos dos grandes países operasse cada vez mais de forma desregulada e liberada.

Então, nós passamos a conviver, da segunda metade dos anos 70 para cá, com um período de instabilidade, sem regulação macroeconômica mundial, com um papel decrescente das instituições multilaterais. Desde então, passamos a conviver praticamente a cada dois anos com uma crise internacional, seja afetando os países do centro do capitalismo, seja os da periferia. Agora nós estamos diante de mais uma crise.

Ou seja, a forma de desregulamentação em que operam os bancos levam a crises sucessivas.E é importante dizer isso, senão não se percebe o papel que vem tendo o Banco Central norte-americano e o governo de tentar regular, de haver a interferência do Estado.

O segundo aspecto diz respeito a uma transição, a um deslocamento da importância da economia americana para o mundo para a economia asiática.

São dois os alicerces que permitiram a expansão da economia americana no período mais recente, dos anos 90 para cá. Ela está sustentada, em primeiro lugar, nos fortes investimentos em tecnologia da informação – setor que enfrentou a crise do ano 2000. E o outro alicerce, referente ao setor imobiliário, agora enfrenta uma nova crise, que colocou por terra toda a parte de construção de imóveis, que vinha em expansão nos Estados Unidos.

A meu ver, estamos diante da decadência da economia dos Estados Unidos, uma economia tão importante, que governava o mundo. De certa maneira nós vivemos – guardadas as devidas proporções – uma sinalização semelhante à que vivemos no século XIX, em que a Inglaterra perdeu dinamismo mundial e os Estados Unidos ascendeu. Hoje, assistimos à perda do dinamismo americano e à ascensão da economia asiática, com a China.